Lis Haddad
O sangue mais fértil
Atualizado: 7 de out. de 2020

Enquanto escorria o sangue mais fértil, a lua se enchia. A revolução começou na Ilha. Os moradores abriram suas casas, vieram em plena luz usando pendentes e espalhando objetos de poder. Muita gente já sabia que havia chegado aquele tempo e ofereceram-se a serem facilitadores da experiência.
A casa foi limpa e arrumada. As flores escolhidas por ela colocadas num vaso improvisado. Os talos giraram distribuindo-se em espiral arquitetando diagonais. O cheiro da sálvia limpava por dentro e por fora e as frutas foram cortadas.
O lençol foi trocado por um azul céu e as fronhas pelo verde fresco. O vento do ventilador tomava corpo nas cortinas e jogava a luz da varanda para o quarto, do quarto para a pele. Na cama dois oráculos, a máquina analógica e o caderno de anotações. Com o corpo já estirado as mãos escorreram para o ventre; intuía que tudo começaria por ali.
Era 4 da tarde quando foi convidada a entrar. Olhos abertos, olhos fechados, a primeira visão de um homem loiro de cabelos curtos e armadura de couro, pronto de coragem para iniciar.
Desenhou a planta que crescia entre a pálpebra e a íris e quando soltou a caneta já havia se lançado no mergulho. Os espasmos avisavam que era hora de afrouxar-se, havia muito a ser manifestado.
O plano branco e os pontos coloridos; pontilhismo, repetia. A gargalhada mais alta e incessante era sua e não era. Era de todos que estavam felizes pelo reencontro. Ele lhe tocou os pés e disse para silenciar. Sugeriu colocar a música e ela calou. Finalmente estava dentro da grande aranha.
O corpo enorme em forma de cúpula era útero e universo. A vida de dentro anunciava a criação da vida (a)fora. À superfície os fractais em relevo como os da colcha de crochê dada pela mãe. Não olhou para os pés, estava absorta pela constatação de que estava dentro de um ventre. O horizonte tomou forma de tecido, um linho cinza escuro de bordados coloridos. Verticais riscavam a vista. Quis voltar à aranha mas já não era possível.
A paisagem era infinita em dimensões e pluralidade, linda, abundante, se transformava ininterruptamente. Camadas se sobrepunham às vezes criando cenários do lado de lá, às vezes do lado de cá. Ela seguia com os olhos. Moveu a cabeça até se dar conta de quem era.
A natureza crua e inefável da aranha, tão desprovida de disfarce, lhe lembrava o jacaré. É na explosão entre o estado meditativo e o abocanhamento impiedoso que mora o seu fascínio. De uma só vez foi levada ao mais profundo de si.
Lembrou do homem que de manhã implorou ajuda, lembrou da morte caída do ninho, entendeu que o jacaré, a águia e o tigre eram um só.
Um dragão gigantesco - da exata medida que são os dragões - a encarava da menor distância possível entre dois. Veja bem, um dragão da exata medida que são os dragões.
Bocejava, lacrimejava, escorria, tossia, bocejava, lacrimejava, escorria, tossia. Como tossia…
Sentou-se e abriu as pernas o máximo que pode, afinal, parir é abrir-se.
O corpo desejou descanso. Abriu os olhos, mudou a posição, provou da melancia e viveu a total dissolução do ego. Agora era a pura manifestação do invisível, tornou-se o verbo criar. Era o inominável, um corpo sem pele, o uno.
'Quero ficar', disse, e recebeu das mãos dele um potinho com mais quatro hastes. Conseguiu levantar-se sozinha, foi ao banheiro, caminhou pela casa. Provou o melão mais doce que já havia comido. Pediu para deitar. Pediu gelo. Pediu dedos. Ganhou cacau. Se encantou pela língua (e esta realmente merece mais atenção).
Finalmente chorou. Não há nome para o que sentiu. Exausta e extasiada, pura epifania: havia parido tudo que existe.