Lis Haddad
Tecer sobre as água
Atualizado: 4 de ago. de 2020


Fiar a lótus é trabalho diligente, paciente, que quase sempre exige o tempo da maturidade. A planta sagrada para o budismo nasce na lama, cresce submersa e floresce na superfície. Tramar sua fibra é ato de peregrinação da alma, momento de restauração da harmonia natural do corpo e espírito.
Myanmar traz consigo o tempo dos monges, é dos poucos lugares onde ainda não se apressam os processos. O maior país do sudeste asiático é majoritariamente budista e tem na sua história tanto o conflito quanto a delicadeza. São centenas de etnias, costumes e tradições que compõem uma trama complexa.
Ao leste, no estado de Shan, está o lago Inle. Nos seus canais pescadores, pagodas, casas de palafita, plantações de tomate e lótus cantam a vida das vilas flutuantes. O povo Intha (Filhos do Lago) vive o tempo da água e ali em suas casas suspensas, tecem.
O ofício de tecer é organizado em torno da relação lago, lótus, artesãos e toda etapa exige habilidade e resignação. Durante as monções, quando a chuva não dá trégua, nascem as plantas mais compridas de fibras mais resistentes. Cada haste é cortada preservando a raiz e garantindo um processo limpo, natural e renovável.
Acredita-se que para uma boa colheita é necessário seguir os preceitos budistas e se purificar. Até alguns anos atrás somente as mulheres solteiras – e assim supostamente virgens – fora do período menstrual podiam retirar as lótus do lago.
A compreensão de pureza se transformou junto com o aumento da demanda de produtos. Hoje parte da matéria prima vem de outras regiões de Myanmar para serem tecidas nas vilas suspensas e as mulheres com mais de 40 anos são consideradas as mais habilidosas artesãs.
Nas oficinas as hastes recebem um corte horizontal, delicado, garantindo que a fibra no seu interior se mantenha intocada. Num único movimento as pontas dos caules são puxadas em direções opostas e torcidas, até revelarem fios tão finos quanto teias de aranha. A esses fios é aplicada uma goma feita de arroz, que os torna fortes o suficiente para serem enrolados nos carretéis. A fibra crua é seca ao sol, conservando a cor terrosa e o cheiro da flor, e sua textura é similar ao linho.
A maior parte da produção da região vem de negócios familiares, em espaços que são extensões das próprias casas. Para feitura de 1kg de fibra leva-se 2 meses; por dia é possível para uma pessoa coletar até 3.000 plantas; para cada metro quadrado tecido são necessárias 20.000 hastes e 40 dias de trabalho. É essa a matemática poética que se apresenta no emaranhado dos fios, nos baldes de tingimento natural e nos enormes teares.
Entrar nessas casas é um convite a experimentar outro tempo. Ao invés de correr os olhos, começamos a navegar pelas lançadeiras em forma de canoa, pelos desenhos que não têm pressa de aparecer, pelas flâmulas penduradas, pelas mulheres que não posam para as fotos. Nem elas, nem o lago, nem as flores, parecem se dar conta da poesia visual que escrevem.
Durante muito tempo os tecidos de lótus foram dedicados somente aos monges e templos. Com o fim do regime militar em 2011 e o crescimento do turismo em Myanmar, a prática de natureza delicada e complexa passou a gerar impacto econômico nas famílias das áreas rurais, onde a lótus cresce naturalmente.
Principalmente na vida das mulheres.
A planta sagrada que cura, restaura e traz boa sorte se torna também um potente instrumento de empoderamento.
Publicado na Revista Urdume #4 (Novembro 2019)